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  • Márcio Jardim Matos

Entre Rousseau e Russo: inquietações sobre o Direito de Família Mínimo

Atualizado: 26 de mar. de 2023

Por Márcio Jardim Matos e Daniel Alt da Silva


*Artigo originariamente publicado no site do IBDFAM. Clique aqui.


Direito de família mínimo tem ganhado cada vez mais destaque

Durante séculos o Direito buscou tutela na palavra estatal. A figura do Estado como o ente que estabelece as diretrizes de convivência entre as pessoas faz parte do Contrato Social idealizado por Jean-Jacques Rousseau, sendo responsável pela pacificação social diante da barreira encontrada para o exercício da autotutela, por vezes desprovida de proporcionalidade, comumente denominada de “justiça com as próprias mãos”. A propósito, tornando cristalina a problemática que envolve o assunto, eis a obtemperação inicial do autor: “pretendo investigar se pode haver na ordem civil alguma regra de administração legítima e segura que considere os homens tais como são e as leis tais como podem ser”.[1]


De outro quadrante, num período em que pouco se tinha a intervenção estatal pairando sobre a autonomia dos indivíduos, era a família quem exercia o papel não só de regulamentar os limites, mas também de conceder os benefícios ou cuidados necessários de seus membros. O Estado, ordinariamente, tendia “a ficar de fora dos assuntos cotidianos de famílias e comunidades” diante do poder apresentado pela estrutura familiar.[2]


Na contemporaneidade, após avançarmos diversas eras com as mais variadas experimentações sociais, repousamos sobre a garantia da tutela do Estado no que tange às regulações de ordem social. Nesse passo, confiamos ao ente público praticamente toda a normatização em relação aos negócios, à segurança, à moralidade e até mesmo ao afeto.


Com a entrega pelo particular de sua intimidade no que diz respeito à própria seara familiar, o que ocorreu foi uma substituição na competência reguladora do espectro afetivo. Vale dizer que dita regulamentação, outrora operada intramuros, passou a constar sob a batuta do Estado, que – dia após dia – teve por normatizar as questões privadas mais caras às pessoas, as atinentes à família. E mesmo com a força desse movimento, sempre existiram vozes que com ele não concordaram, julgando ser indevida a intromissão em esfera tão íntima dos cidadãos. De outro giro, insta mencionar que muitas pessoas encontraram no poder estatal a suficiente segurança de que somente aquilo que fora alcançado por sua intermediação é capaz de ser revertido em legítima parcela do justo. Isto certamente decorre não só de sua alegada isenção, mas também em virtude da sua oficialidade verticalmente imposta.


Certos ou errados, justos ou justiceiros, o fato é que cada vez mais se fala na figura de um Direito de Família Mínimo, cujo significado – em analogia – é colhido do Direito Penal. À vista disso, o Estado apenas deve intervir no domínio familiar para concretizar os direitos fundamentais de seus integrantes, franqueando o exercício da autonomia privada, o desenvolvimento da personalidade e o alcance da felicidade.[3] No mais, não havendo vulnerabilidades, cada um que cuide de sua família. Sem sofismas, ante as peculiaridades do Direito das Famílias, é factível asseverar que revisitamos o “tema da contraposição e das relações entre a vida pública, simbolizada aqui pela praça, e a vida privada, simbolizada pelo jardim”, que nos leva a divagações diversificadas.[4]


Ainda na década de 80, provavelmente buscando autonomia em cuidar do próprio jardim, Renato Russo já cantava: “não estatize o meu sentimento”.[5] Agora, na contemporaneidade, vimos a figura da autonomia privada dos indivíduos ganhar cada vez mais voz, defendendo a possibilidade de verdadeiros negócios jurídicos ditando as regras de algo que parecia ser monopólio do Estado: o afeto. A esse respeito, não custa rememorar a “importância do poder negocial como força geradora de normas jurídicas”.[6]


Não obstante o fato de que vivemos em uma sociedade com características conservadoras, cujo resultado é o Direito sendo moldado pela moral, tal movimento tem sido observado em diversos institutos relacionados ao Direito das Famílias. Aliás, inclusive sendo “nela que em geral se inspiram as decisões do legislador”, impossível negar espaço para a concessão de respeito à liberdade, a ser concebida como a “expressão da dignidade e da autonomia da pessoa”.[7] De toda sorte, não é por demais lembrar que novas realidades familiares surgiram diante da imposição da autonomia privada sobre o texto expresso da norma jurídica, tais como a dispensável figura do casamento nas relações conjugais, as uniões homossexuais, a multiparentalidade e a consideração – em alguns casos – das famílias simultâneas, só para citar alguns exemplos.


No entanto, a questão que se coloca é o quanto nossa sociedade estaria madura para uma abertura tão grande na forma de organicamente regulamentar, de per si, o afeto. Ou seja, estamos prontos para permitir uma abertura do Direito das Famílias, com a sua retirada do campo das normas cogentes, para realocação no picadeiro das normas negociais?


As reflexões aqui expostas revelam que a resposta é típica do profissional da área jurídica: depende. De fato, se houver uma espécie de ruptura entre um sistema e outro, passando tudo a ser permitido em homenagem à autonomia privada, o efeito talvez até pudesse ser reverso ao pretendido, com imposições desproporcionais exercidas por quem tem papel predominante na família em detrimento de quem demonstre maior vulnerabilidade, quiçá revolvendo à época de prestígio à vocação antropocêntrica.


Todavia, sabemos que o caminho para um Direito das Famílias que se volte mais a atender ao real anseio das pessoas pode ser trilhado por meio de estágios de evolução a serem implantados diante das necessidades que o momento de maturidade social requer. Isso, de certa forma, traz um ar de normalidade ao sistema até então experimentado. Afinal, a cada anseio surgido pela sociedade temos uma resposta estatal que, a depender da evolução da época, muitas vezes é dada com a premente mudança de paradigma. Por isso mesmo o papel do profissional da área jurídica que atua na linha de frente é estar atento às mudanças, e agir como agente provocador dotado de irrefreável responsabilidade.


Claro, o avanço é desejável e até mesmo imprescindível. Contudo, de tempos em tempos somos forçados a nos colocar em posição de reflexão sobre até que ponto aquilo que está posto serve – ou não – para resolver os reais problemas das pessoas. Nesse sentido, a pandemia da COVID-19 veio para que velhos hábitos fossem mantidos, enaltecidos ou rechaçados por imposição de verdadeira necessidade.


Na outra parte da canção acima citada, o poeta do rock mostra a sua inquietude ao cantar que a justiça é errada e desafinada. No mesmo verso, porém, traz o alento de que essa mesma justiça é “tão humana”. Afinal, cabe à humanidade, e somente ela, traçar os próprios rumos e escolher seu destino. Em épocas passadas já experimentamos trevas e o relato de quem nos antecedeu demonstra um gosto amargo que fica na memória coletiva, para que a humanidade sempre se sobreponha e cada um veja o outro com honesta empatia. Então, que ao final, como fruto de toda essa evolução, tenhamos a mínima e imperativa regulamentação do pacto social idealizado por Rousseau, para que triunfe a liberdade desejada na poesia de Renato Russo!


 

[1] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social ou Princípios do Direito Político. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011, p. 54 [2] HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. 29. ed. Porto Alegre: L&PM, 2017, p. 367 [3] ALVES, Leonardo Barreto Moreira. Direito de Família Mínimo: a possibilidade de aplicação e o campo de incidência da autonomia privada no direito de família. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 145. [4] SALDANHA, Nelson. O Jardim e a Praça: o privado e o público na vida social e histórica. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993, p. 17. [5] Trecho da música Baader-Meinhof Blues do álbum de estreia da Legião Urbana de 1985. [6] REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 24. ed. São Paulo: Saraiva, p. 179 [7] PERELMAN, Chaïm. Ética e Direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 315.

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